Por norma, frequento as livrarias aos sábados (tendo-os disponíveis) e faço a(s) minha(s) escolha(s) entre os muitos livros que vejo, tentando dar prioridade à aquisição de obras que à partida são essenciais em qualquer biblioteca.
Confesso que muitas vezes fico com um amargo de boca por não ter a capacidade financeira para comprar mais e por essa razão muitos livros fogem à minha posse.
Quem me conhece sabe que odeio perder tempo com compras e normalmente vou directo ao produto que quero comprar e saio logo. Mas numa livraria transformo-me por completo e sou capaz de ficar horas a vasculhar as estantes.
Se exceptuarmos a minha casa, as livrarias são os locais onde passo mais tempo da minha vida.
Como disse anteriormente, costumo aproveitar os sábados disponíveis para aumentar a minha biblioteca mas o livro que vou referir foi adquirido de outra forma.
Há algum tempo atrás, a um dia da semana, durante a pausa para almoço e antes de regressar ao local onde estava a trabalhar, encontrei por mero acaso (quantas vezes já ali tinha passado!?) um pequeno alfarrabista. E só dei por ele porque na entrada estava um livro que me sorriu.
Parecia que tinha sido colocado ali com o único propósito de me chamar a atenção. Mesmo estando rodeado por tantos outros, os meus olhos só viram esse livro. Todos os outros passaram a ser apenas visão periférica. Só este livro me sorriu e me cativou.
A minha reacção imediata foi pegar no livro e, tal qual uma criança com um brinquedo novo, quis logo ler o seu interior. Não sei quanto tempo estive ali parado a folhear o livro, só sei que, não fosse a voz que suou aos meus ouvidos a perguntar se estava interessado em comprar o livro, eu tinha passado o resto da tarde à entrada daquele pequeno espaço a ler.
Por não ter o hábito de andar às compras durante os dias de semana, naquele momento eu não tinha dinheiro comigo e pedi ao jovem alfarrabista para me guardar o livro até ao dia seguinte. Aquele livro de capa verde tinha de ser meu e fazer parte da minha bilioteca.
E no dia seguinte o livro de capa verde Obra poética de José Carlos Ary dos Santos editado pelas Edições Avante passou a ser meu a troco de apenas 10 euros.
Pela amabilidade como fui tratado, apesar de estar com roupa de trabalho (suja e esgaçada) e com um aspecto mais condizente com um arrumador de automóveis do que com um amante dos livros, quero deixar o meu apreço ao jovem alfarrabista. Os bons gestos devem ser retribuidos, por isso aqui deixo os contactos deste pequeno espaço ( talvez nem 2 metros quadrados) onde encontrei o livro que me sorriu.
LIVRARIA SIMÂO - livros usados, raridades bibliográficas
compra e venda - bibliotecas, livros velhos, usados, antigos, banda desenhada, manuscritos, gravuras, papéis velhos, discos.
Escadinhas de S. Cristóvão, nº18 (à rua da Madalena) 1100-512 Lisboa
psmc@clix.pt - 211106666 - 961031304
Aqui deixo um poema que sempre me fascinou e que faz parte deste livro do grande Ary dos Santos.
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
poeta castrado não!
Obra poética - José Carlos Ary dos Santos - Edições Avante