Hoje decidi fazer um post diferente do habitual. Em vez de falar de um livro vou falar apenas de um poema de um livro.
Antes mesmo de transcrever esse poema gostaria de dizer a todos os que gostam de poesia que existem dois blogs http://euli.blogs.sapo.pt/ e http://cateespero.blogs.sapo.pt/ do amigo António Silva, que nos oferecem poesia de vários poetas de épocas distintas. São dois blogs que acompanho com regularidade e que aconselho vivamente que adicionem aos vossos contactos. Para além disso, estes blogs do amigo António Silva são, aquilo que considero, um verdadeiro serviço público. Obrigado António pela generosidade de nos oferecer esses pequenos pedaços da nossa história cultural.
Apenas fiz esta pequena introdução porque não é de todo minha intenção fazer um trabalho de divulgação como se faz nesses blogs. Este é um post excepcional que não pretende ser regra.
Quem me costuma visitar aqui sabe que sou um devorador de livros e que imponho a mim próprio a leitura diária de pelo menos um capítulo ou de, no caso da poesia, quatro ou cinco páginas. Esta disciplina que me acompanha há muitos anos tem feito com que nunca perca o interesse pela leitura e leia sempre até ao fim cada um dos livros que me vêm parar às mãos, mesmo quando são desinteressantes.
Feito todo este monólogo chato mas baseando-me nele, é por esta disciplina que me imponho, que hoje ao acordar peguei no livro de poesia que tenho estado a ler e me deparei com este poema. Identifiquei-me de tal forma com ele que decidi partilhá-lo convosco.
Inventário
E, apesar de tudo, sou ainda o Homem,
Um bícepe com fala e sentimentos!
Ao cabo de misérias e tormentos,
Continua
A ser a minha imagem que flutua
Na podridão dos charcos luarentos!
Sou eu ainda a grande maravilha
que se mostra no mundo!
O negro abismo que tem lá no fundo
Um regato a correr:
Uma risca de céu e de frescura
Que murmura
A ver se alguma boca a quer beber.
Quando o grave silêncio da paisagem
Me renega e protesta,
Pouco importa na festa
deste encontro feliz;
Obra de Arcanjo ou de Santanás,
Eu é que fui capaz
De fazer o que fiz!
Podia ser melhor o meu destino:
Ter o sol mais aberto em cada mão...
Mas, Adão,
Dei o que a argila deu.
E, corpo e alma da degradação,
O milagre é que o Homem não morreu!
Não! Não me queiram na cova que não tenho,
Porque eu vivo, e respiro, e acredito!
Sou eu que canto ainda e que palpito
No meu canto!
Sou eu que na pureza do meu grito
Me levanto!
MIGUEL TORGA - poesia completa vol.1
Publicações Dom Quixote
2007